Nov 26, 2006

ALMODÓVAR FALA SOBRE VOLVER E SUAS ATRIZES



"Existe algo terrível na realidade, mas não sei o que é. E ninguém me diz, nem sequer você”, se queixa a neurótica Monica Vitti a Richard Harris, depois de ter dormido com ele, no final de Deserto Vermelho (de Antonioni). Assisti ao filme novamente e essa frase me causou muito impacto. Gostaria de aplicá-la a mim, mas não entra nem à força. Esta seria a minha adaptação: “Existe algo terrível na realidade, eu sei o que é, mas não quero dizer a vocês” — ao menos, não de imediato.

Quando digo “realidade”, refiro-me à trama de Volver. O filme está finalizado, minha aventura acabou e, com ela, minha procura. Finalmente vislumbro aquilo que queria contar: uma história da Espanha moderna que acontece no mesmo lugar, com os mesmos personagens, onde se desenvolve a Espanha arcaica. No início da filmagem eu não sabia, mas queria mostrar que, sem trocar de cultura, cenário, personagens, época e costumes, tampouco sem renunciar à “profundidade” da Espanha profunda, existe uma Espanha que exala luz e bondade. E essa é a que retrato em Volver.

Nos últimos dias, por razões ligadas à divulgação do filme, falei muito de realidade e de ficção, das minhas origens e da origem de minhas histórias, e das atrizes. A primeira projeção do filme naturalmente foi para elas. Pude ver como enfrentavam, pela primeira vez, a tela onde se projetava Volver, convertidas em interlocutoras de si mesmas.

Depois da exibição, logo que as luzes da sala de cinema se acenderam, foi muito emocionante observar as reações delas. Lola, Yohana, Carmen e Blanca Portillo descobriam, com estupor, alegria, estranheza, lágrimas e assombro, uma história na qual não se reconheciam — ou reconheciam somente rasgos externos de si mesmas —, como se fora uma irmã gêmea especial que tivesse interpretado o personagem de cada uma delas.

Os olhos de Carmen Maura brilhavam de espanto, como se neste momento ela estivesse formulando uma pergunta para si e ainda não soubesse exatamente a resposta. Sua reação foi idêntica àquela de 22 anos atrás, quando lhe mostrei a cópia de O que Eu Fiz para Merecer Isso?. “Não me reconheço”, me disse, “nem fisicamente nem em nada.” Olhei para ela sem saber se aquilo era bom ou mau. Depois Carmen acrescentaria, eufórica: “E estou encantada!”. E a partir desse momento, seus olhos não pararam de brilhar sempre que falava do filme.

Vinte e dois anos depois sua reação foi a mesma, mas desta vez eu não tinha dúvidas de que era o melhor comentário possível: não me reconheço. A princípio, a imagem de Carmen no filme está muito distante de sua própria imagem, como a de O que Eu Fiz... em relação à sua imagem na ocasião. Contudo, em seu não-reconhecimento, ela se refere a algo que está além do físico. Algo que tem a ver com essa capacidade que os bons atores possuem para se colocar nos personagens, como quem sai deste mundo e vai a um outro mundo paralelo. Quando voltam a este, sobretudo depois de vários meses, se esquecem de que estiveram lá. Surpreendem-se ao encontrar imagens que mostram seu lugar naquele mundo paralelo do qual eles entram e saem como se fosse a casa da Mãe Joana.

Vi Blanca Portillo agarrada a Javier Cámara [o enfermeiro de Fale com Ela], a quem também convidamos para a primeira projeção, chorando copiosamente, enquanto eu tratava de manter uma conversa impossível com as outras três atrizes. Depois, ela veio em minha direção e nos abraçamos fortemente. Blanca continuou chorando copiosamente e provavelmente me disse algo, mas ela estava apoiada no meu ombro direito e, como sou surdo do ouvido desse lado, não pude escutá-la. Acredito, porém, que a compreendi mesmo assim, e isso me fez chorar também, o que me dá uma vergonha espantosa. Vergonha que ela não conhece e por isso é atriz, e eu não.

Chamei Blanca Portillo para participar do filme como quem chama uma iniciante, pois só a conhecia por sua interpretação [na peça] Como en las Mejores Familias. Ela entrou no meu escritório na produtora El Deseo, expliquei por cima o que pretendia da personagem Agustina [coadjuvante fundamental para o desenlace da trama] e lhe pedi que lesse uma parte do roteiro. Parece fácil, mas esses tipos de provas são incômodas e desagradáveis. Para Blanca não foi. Sua leitura me convenceu a tal ponto que eu não queria mudar nada, por medo de romper a exatidão com que ela havia dado carne e osso à personagem. Não tive dúvidas de que ela era Agustina.

Quis manter aquilo que Blanca, de supetão, tinha realizado na primeira leitura. Poucas vezes acontece de entrar pela porta a personagem que você está procurando. Quando ocorre, é preciso intervir o mínimo, evitar ser um obstáculo entre a atriz e seu achado espontâneo. Depois, durante as filmagens, descobri sua experiência sem vícios e seu sentido inato de medida — e aproveitei isso. Tenho um longo caminho a percorrer com Blanca.

Experiência sem vícios é outra forma de definir a arte de Carmen Maura, algo muito mais difícil de conseguir do que ela mesma acredita. A experiência não é um grau, mas sim uma degradação, com apenas um pouco de descuido. Só as atrizes geniais sabem manter a chama do seu talento durante décadas, sem se automatizarem e sem adquirirem vícios.

Quando deixamos de trabalhar juntos, em 1988, Carmen estava no auge de sua carreira. Era uma virtuosa sem alardear isso. Versátil. Com dotes idênticos para a comédia e para o drama — e, o que é melhor, para que ambos os registros convivessem na mesma interpretação de modo natural, sem que nada saísse do lugar. Carmen era o instrumento mais bem afinado com o qual eu havia me encontrado.

Quando na primavera passada conversei com ela em sua casa para oferecer o papel de avó fantasma em Volver, Carmen me recebeu com o mesmo olhar sedutor de 20 anos atrás. Eu desejava que voltássemos a trabalhar juntos. No dia em que ela retornou ao escritório da produtora, tendo analisado o roteiro e aceitado a personagem, iniciamos a leitura de algumas seqüências (“Não gosto de ler”, disse ela. E eu já sabia, mas para mim essas leituras nervosas e rápidas, pulando etapas, me ajudam a valorizar e especificar os diálogos e, sobretudo, rompem o medo do ridículo que nesse momento sentimos todos). Comento a leitura e começo a falar de tons e de conteúdos que se escondem entre as linhas dos diálogos.

Continuamos lendo, apenas alguns minutos haviam se passado, mas a Carmen que eu tinha na memória estava ali, na minha frente. Isso me tranqüilizou e provocou em mim uma admiração nova. Quase tudo se deteriora com o tempo, porém a comunicação sagrada da qual desfrutávamos há duas décadas continuava intacta. A filmagem confirmou isso. De novo, Carmen tinha realizado sob a minha batuta uma interpretação emocionante, divertida, memorável. Tinha se arriscado com uma personagem beirando o grotesco e converteu sua dificuldade em verossimilhança, sua obscuridade em clareza.

Entre outras coisas, Carmen e Blanca são duas figuras femininas que transbordam solidão no “deserto branco” do povo de Castilla La Mancha, onde transcorre Volver.


Volver (Espanha, 2006), 2h01. Comédia dramática. Direção e roteiro de Pedro Almodóvar. Com Penélope Cruz, Carmen Maura, Lola Dueñas, Blanca Portillo e Yohana Cobo. NOS CINEMAS


Por Pedro Almodóvar

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