Argentino ganhou Oscar por trilhas sonoras como a de Babel Gustavo Santaolalla é um argentino que já experimentou quase tudo — desde a vida em uma comunidade hippie na década de 1960, até os flertes com o rock e o folclore latino como artista solo. Apesar de uma carreira marcada pelo hibridismo musical, o líder do grupo Bajofondo, que se apresentou em Porto Alegre no último dia 16 de maio, revela que também cultiva um certo purismo. Em paralelo às mesclas de rock, jazz, R&B, tango, milonga, eletrônica, rap e candombe, ele já participou de projeto na zona rural da Argentina, gravando com músicos locais. Em entrevista ao Segundo Caderno, o músico também revela as influências da música brasileira e fala sobre o trabalho para o cinema.
Santaolalla foi premiado com o Oscar pelas trilhas sonoras dos filmes O Segredo de Brokeback Mountain (2005) e Babel (2006). Radicado em Los Angeles desde 1978, passou a trabalhar com cinema nos anos 1990, assinando temas para filmes como 21 Gramas e Diários de Motocicleta.
Leia abaixo a íntegra da entrevista com o músico:
Zero Hora - Aqui no Brasil, temos pouco contato com a música cantada em espanhol. A que você atribui isso?
Gustavo Santaolalla - Creio que um dos motivos é a riqueza musical impressionante que há no Brasil. Com uma cultura musical tão forte, torna-se mais difícil que as pessoas tenham acesso e até interesse (pela música de outros países), dada a variedade que há na música brasileira. Mas creio que, com o Bajofondo, esteja acontecendo algo diferente. Teremos uma música (Pa'a Bailar) incluída em trilha sonora de novela, o que vai ser sensacional para nós, a música vai tocar para algo como 70 milhões de pessoas por dia. Isso vai nos dar uma projeção total, e sabemos que a novela é uma parte muito forte da cultura brasileira e latina — e isso não digo eu, diz o García Márquez, que adora novelas. O que é incrível para nós. E acabo de trabalhar outra vez com Walter Salles no filme Linha de Passe, para o qual compus a trilha sonora. E também estou fazendo uma canção com a Marisa Monte para um filme, agora não lembro o nome do diretor nem do filme. A música se chama Calma, de Marisa com Arnaldo Antunes, e também vou escrever uma parte. ZH - Tem havido parcerias entre músicos argentinos, brasileiros e uruguaios, como Jorge Drexler, Paulinho Moska, Vitor Ramil, Kevin Johansen, Campodónico, você mesmo. Isso é uma novidade.
Santaolalla - Isso é muito bacana, porque temos muito em comum.
ZH - É isso: o que temos em comum?
Santaolalla - Temos um inimigo comum, que são os Estados Unidos (risos). E somos parte do mesmo continente, somos latinos. Temos (os argentinos) mais raízes espanholas e italianas, e vocês, mais portugueses. Mas somos todos latinos e há uma sensibilidade relativa a isso. E temos esta zona dos gaúchos e dos gauchos, temos a mesma paixão pelo futebol, temos muitas coisas em comum. E está bem que se produza este intercâmbio. E fico feliz, porque sempre adorei a música brasileira e fui seguidor de todos os grandes da música brasileira.
ZH - Como...
Santaolalla - Como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Egberto Gismonti, Milton Nascimento... Mas sempre me pareceu algo quase impossível pensar que poderia ter algum tipo de entrada aqui. E parece que está acontecendo, é uma combinação de muitas coisas: a música dos filmes, a colaboração com Walter (Salles), agora essa conexão com Marisa e com Jaques Morelenbaum — que tem uma relação com Julieta Venegas (cantora mexicana). Então, é como uma rede, algo muito interessante. E agora com o Bajofondo, vejo que as pessoas aqui gostam bastante, e ano que vem deveremos fazer uma turnê por mais cidades brasileiras.
ZH - Você sempre se interessou pelo hibridismo musical. Como é, por exemplo, lidar com isso e enfrentar os purismos?
Santaolalla - Eu cultivo as duas coisas. Desde que comecei minha carreira, trabalhei mesclando linguagens contemporâneas, como o rock, o jazz e o R&B, com o folclore argentino e latino-americano. Em paralelo, um dia fiz um projeto com meu amigo Leon Gieco, no qual fomos de Ushuaia a La Quiaca (cidades do Sul e do Norte argentinos) gravando músicos rurais fazendo folclore em sua forma mais pura, sem a perspectiva de fazer discos ou aparecer na TV. Agora, tenho o Bajofondo e estou desenvolvendo outro projeto: uma série de discos, um livro e um filme que produzi com Walter Salles (Café de los Maestros), que estreou no Festival de Berlim e reúne os grandes luminares vivos do tango, artistas entre 70 e 95 anos, o que é puro, puro, puro.
ZH - Algo como um Buenos Aires Social Club?
Santaolalla - Sim, mas mais como o De Ushuaia a La Quiaca, feito 15 anos antes do Buena Vista Social Club. Gosto do Buena Vista Social Club e gosto do Ry Cooder, mas havia um precedente. E os projetos são diferentes em vários aspectos. Por exemplo: não sou um gringo que veio fazer um disco de tango. Não toco no disco, só canto um tema com a Lágrima Ríos (cantora de tango uruguaia que morreu em dezembro de 2006, aos 82 anos). E o som dos discos é diferente, o Buena Vista é mais um disco de ambiente, e este é um disco in your face. De qualquer forma, as duas coisas me interessam. Por um lado, me parece muito importante preservar os gêneros em sua forma pura, porque têm um valor quase antropológico, não se pode perder isso. Mas também acho importante fazer uma música que reflita quem somos hoje — e não somos mais aqueles tangueiros com o bandônion sob o poste de luz. Vivemos em um lugar onde há o concreto, a internet, e tantas outras coisas, também são partes do que somos. No Bajofondo, não recebemos nenhuma crítica dos mestres. Até porque sempre tratamos de dizer que não fazemos tango. Não gostamos do rótulo tango eletrônico, porque parece muito pequeno. Fazemos também coisas relativas à milonga, ao candombe, ao hip hop, ao rock. Sentimos que fazemos música contemporânea do Rio da Prata, música que tem a ver com o que somos.
ZH - E como é para criar as canções a partir desses elementos todos?
Santaolalla - O processo de composição varia muito, mas muito do trabalho começa com Juan Campodónico e comigo, nos juntamos e escrevemos. Quando levamos para a banda, o material naturalmente sofre uma transformação. Luciano (Supervielle, tecladista e DJ do grupo) também compõe, todos contribuem. Depois, tudo também passa pelo crivo de Juan e meu, porque somos os produtores do grupo.
ZH - Como as pessoas na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, recebem a música de vocês?
Santaolalla - Acho que tem algo de universal no que fazemos. É aquilo de pintar a tua aldeia e pintar o mundo: nossa música reflete um lugar e conecta com a gente de outros lugares. É incrível: tivemos shows lotados em Praga, na Grécia somos disco de ouro, tocamos na Lituânia, já fomos à Bélgica umas oito vezes. Há algo que conecta. E tem um pouco da melancolia, da obscuridade do tango, que se relaciona com muitos outros artistas. Tom Waits e Marianne Faithfull têm tango no que fazem.
ZH - E como é fazer música para cinema?
Santaolalla - É muito diferente de fazer canções ou de compor para o Bajofondo. Nos filmes, gosto de trabalhar a partir da história e da relação com os personagens, e de conversar bastante com o diretor, antes de ver as imagens. No Brokeback (O Segredo de Brokeback Mountain, 2005), fiz toda a trilha sonora antes das filmagens. Assim, o diretor já pensa com a música, que se torna uma parte importante do filme.
ZH - E como foi ganhar não um, mas dois Oscar? É algo incrível...
Santaolalla - Foi incrível para mim também. Fazia alguns anos que eu tinha me aproximado do cinema, era um trabalho pelo qual eu esperava algum reconhecimento. Sempre se destacavam mais as trilhas sinfônicas, e meus trabalhos são mais minimalistas, intimistas, que agradaram ao público.
ZH - E como começaste a trabalhar com cinema?
Santaolalla - Foi totalmente por acaso. Eu tenho um disco chamado Ronroco (de 1998), e Michael Mann queria usar na trilha de The Insider (O Informante, 1999). Depois, uma amiga em comum com Alejandro González Iñárritu nos apresentou quando ele ia fazer Amores Perros. Alejandro me apresentou a Walter Salles, e quando estávamos apresentando Diários de Motocicleta em Sundance, conheci Ang Lee. E assim foi. Não fiz muitos filmes, são uns oito.
ZH - Mas agora há uma fila de diretores querendo trabalhar com você... (risos)
Santaolalla - Mas também demoro para escolher os projetos. A primeira opção agora foi trabalhar com Walter outra vez. Há um outro projeto com ele, On the Road, sobre o livro do Jack Kerouac, e também um projeto com Alejandro, outro para a Alemanha... não sei, são muitas coisas. Tenho outras atividades: um selo, uma editora, uma produção de vinhos em Mendoza (Don Juan Nahuel, nome do filho de Santaolalla). E ainda tem o Bajofondo.
ZH - E a carreira solo, o trabalho autoral?
Santaolalla - Está nesses trabalhos todos. A música dos filmes é minha, e tem muita coisa minha no Bajofondo. Mas vou querer fazer alguma coisa solo mais adiante, sim, ali por 2010.
ZH - Hoje, você diria que o Bajofondo é um instrumento ideal para suas idéias?
Santaolalla - Sim, mas não são só idéias minhas. E é uma maneira de tocar ao vivo de novo, o que eu fiquei sem fazer durante uns 20 anos. Quando voltei, pensei: "Por que parei por tanto tempo? Tenho que fazer isso." E o Bajofondo me dá essa chance.
ZH - E como é dividir esse trabalho com Juan Campodónico, outro grande produtor. É uma disputa artística?
Santaolalla - (Ri) Na verdade, temos muita afinidade, pelo menos quanto ao que buscamos com o Bajofondo. Trabalhos muito confortavelmente. Cada um tem suas idéias e suas coisas, mas há uma boa parceria.
ZH - E como é para você viver nos Estados Unidos (em Los Angeles)?
Santaolalla - É como morar em Roma. Tem coisas nos EUA de que gosto, e também pessoas de que gosto. Mas, em geral, sinto que os Estados Unidos são uma força muito negativa no mundo, sempre foram e seguem sendo. Eu, estando lá, trato de fazer o que posso para que isso mude. Discordo da política dos Estados Unidos, especialmente a política externa, agora mais do que nunca. Há muitas coisas que me incomodam lá, mas também muitas coisas de que gosto. De lá saíram muitas pessoas incríveis, como John Coltrane, Jimi Hendrix, Walt Whitman, Charles Bukowski, e há pessoas maravilhosas lá. E é um lugar que me deu muitas oportunidades.
ZH - E você não sente falta da Argentina?
Santaolalla - Não, porque estou sempre na Argentina, pelo menos quatro vezes por ano. Tenho relação forte com a cultura de lá, e com meus amigos, e com os projetos que tenho lá. Luís Bissgo | luis.bissigo@zerohora.com.br
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