Apr 20, 2008

"A Pilar deitou-me a mão e não me deixou cair", José Saramago

Aqui vai uma parte de uma bonita envista dada pelo escritor José saramago a um jornal Portugues:

«Comecei a decair há três anos com um ataque de soluços que durou dois meses e me reduziu a quase nada»
. E adianta que foi a mulher, Pilar, quem lhe deitou a mão «à gola do casaco» e não o deixou «cair no poço»

Chega magro, frágil, lento, amparado por Pilar. Sem um sorriso. Com a imponência que a figura alta, vertical, sugere. O aperto de mão, da mão descarnada, é firme.

A mulher, sempre a seu lado, tem de conduzi-lo ao interior da biblioteca onde todos os dias escreve. Ali, entre mais de 15 mil livros, seus e de outros, o silêncio seria absoluto, não fossem o sopro quase musical do vento que se infiltra nas janelas e o rumor das vozes dos colaboradores da biblioteca.

Envolvido pela luz natural que trespassa o tijolo de vidro, sentado num cadeirão de costas para a sua mesa de trabalho, José Saramago não começa a entrevista sem cumprir o ritual diário: «El periódico». Enquanto não lhe trazem um jornal – o El País – parece alheado do que se passa à sua volta. É Pilar, com o afecto de quem cuida, que lho tira das mãos. Já passa do meio-dia, há que dar início à conversa.

No princípio foi a morte, o encontro com a protagonista de um dos seus últimos livros. Escapou-lhe por «milagre», como ele próprio reconhece. A quem o viu de cadeira de rodas, em Lanzarote, na abertura d’A Consistência dos Sonhos, exposição que lhe documenta toda a vida e obra, não passou despercebido o débil estado de saúde do escritor. Passados cinco meses, vem inaugurar a Lisboa essa mesma exposição. A partir de 23 de Abril, no Palácio da Ajuda, romances inacabados, poemas, apontamentos, contos, fotografias de família, recortes, convivem com instalações multimédia e centenas de capas dos livros do autor, traduzidos para cerca de 50 línguas.

Fernando Gómez Aguilera, comissário da mostra, preparou José Saramago: A Consistência dos Sonhos – Cronobiografia (a sair em português pela Caminho), que reúne exaustivamente pensamentos, reflexões sobre política, jornalismo e intervenções do escritor, a par de inúmeras fotografias e factos da sua vida.

Dez anos depois de ter ganho o único Nobel da língua portuguesa, Saramago refere-se a 2008 como «o ano do jubileu». Tem razões para isso. Além da exposição e de um Diccionario de Personajes Saramaguianos, publicado pela Universidade Católica de Córdoba (Argentina), está a escrever um novo livro, A Viagem do Elefante, que pensa editar no Outono. Pela mesma altura chegará aos cinemas a adaptação do Ensaio Sobre a Cegueira, realizada pelo brasileiro Fernando Meirelles.

De volta à biblioteca, em Lanzarote, José Saramago fala como o narrador dos seus livros. Com o sobrolho levantado, a testa é um amontoado de sulcos horizontais que só se esbatem na presença de Pilar. A meio da conversa, a discreta espanhola da Andaluzia, 28 anos mais nova do que o marido, entra na sala – e percebe que se está a falar dela. Prefere não ouvir, retira-se. Mas acompanha-o sempre, em pensamento e em sonhos. Agarrou-o «pela gola do casaco» no momento decisivo da doença. «Cariño», chama-lhe Saramago, que não perde uma oportunidade de lhe segurar a mão.

Continue a ler esta notícia na edição impressa disponível nas bancas espalhadas por Portugal.

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