Mar 23, 2007

CARNE TRÊMULA

Até olhares menos versados na estética e no estudo do Cinema podem apontar a diferença entre o Almodóvar de hoje e o Almodóvar de ontem.

Suas obras dominadas pelo excesso, beirando o escatológico – ainda que com idéias interessantes – como Ata-me! e O Matador, deram lugar a filmes precisos, refinados e belíssimos, em uma fase, digamos, mais madura.

A Flor do Meu Segredo pode ser considerada como a primeira aparição deste Almodóvar mais controlado. Porém, não restam dúvidas de que a consagração definitiva do espanhol como cineasta – pelo menos ao meu ver – deu-se com Carne Trêmula, o primeiro de uma série de trabalhos praticamente irrepreensíveis que o colocam como um dos mais completos diretores da atualidade.

Contar o mais breve resumo de Carne Trêmula é simplesmente entregar boa parte da graça de se assistir ao filme. A capacidade de Almodóvar de surpreender o espectador com acontecimentos inesperados é tanta que as reviravoltas já acontecem com poucos minutos de projeção. Para falar sobre a trama, basta dizer que é um conto sobre cinco personagens conectados pelos meandros da paixão e do amor.

Na verdade, falar só em paixão e amor é limitar o alcance de Carne Trêmula.

A trama criada por Almodóvar tem todos os elementos necessários para se construir uma grande história: sexo, amor, obsessão, crime, tragédia. E, para o deleite do espectador, o cineasta é incrivelmente hábil ao abordar todos estes temas, jamais perdendo a segurança da narrativa.

Esta, aliás, uma das forças de Carne Trêmula. A ótima trama concebida pelo cineasta encontra a parceria ideal nas opções tomadas pelo Almodóvar diretor. Preciso nos movimentos de câmera e no desenvolvimento da história, o realizador consegue manter o enredo sempre interessante. É praticamente impossível prever o que acontecerá em seguida.

Além disso, as reviravoltas na história não estão lá apenas para uma “pegadinha” no público. Pelo contrário: ainda que inesperadas, elas são caminhos extremamente lógicos e de acordo com os personagens, enriquecendo consideravelmente a trama.

Almodóvar não tem a necessidade de dar ao espectador aquilo que ele espera, preferindo preocupar-se com o que realmente poderia acontecer com seus personagens. Dessa forma, respeita a inteligência da platéia, fato que sempre faz diferença na apreciação de qualquer obra.

Falando nos personagens, eles também são construídos com extremo cuidado por Almodóvar. Sem exceção,

as pessoas vistas em Carne Trêmula poderiam facilmente habitar o mundo tridimensional, uma vez que têm motivações, desejos e defeitos como qualquer ser humano.


E, como mais um destaque da impecável construção da história, todas suas atitudes dos são coerentes com aquilo que havia sido apresentado sobre eles. Não há aquele momento em que o espectador pensa: “Ele nunca faria isso”.

Também colabora para isso o elenco afinado que Almodóvar juntou. Bardem está excepcional como o paraplégico e é dele uma das melhores falas do filme, que diz muito sobre seu personagem: quando sua esposa fala que vai continuar com ele porque David precisa mais dela do que o amante, ele responde “Tudo bem, vou continuar explorando seu complexo de culpa”. Da mesma forma, Francesca Neri desenvolve Helena de forma exemplar, em uma mistura de inocência, sensualidade e até crueldade (“Você é ofensivamente sincera”, diz David). Esta mesma competência vale para o restante dos atores, que aproveitam a riqueza do roteiro para criar personagens complexos e reais.

Impossível não destacar também o domínio técnico do cineasta. Além do desenvolvimento da narrativa ser realizado no ritmo certo e sem excessos,

Almodóvar compõe cenas visualmente belíssimas, comprovando sua evolução também em termos de estética.

A seqüência inicial, por exemplo, com o parto no ônibus, é filmada com consciência e plasticidade: Almodóvar enquadra o automóvel de longe, aproximando, aos poucos, a câmera da janela onde se encontra a personagem de Penélope Cruz.

Com tantas qualidades, Carne Trêmula é a realização dos sonhos de todo cineasta: possui uma história inteligente e um estilo próprio, mas foge das limitações da alcunha de “filme de arte”. Todos podem apreciar a genialidade de Almodóvar em Carne Trêmula. E certamente irão.



Por Silvio Pilau
27/09/2006

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